Em certa ocasião, uma pessoa pobre de alma (e eu espero já ter refletido, aprendido e evoluído), disse em uma roda de conversa, que não apreciava pessoas que trabalham em atividades em que não se usa o cérebro, citando como exemplo as pessoas que cozinham.
Certeza que é dessas pessoas que acham que o leite "nasce" na caixinha e que existem pés de bolo por aí.
Esse texto do André fala muitíssimo bem sobre o que é cozinhar.
Vai além do cérebro, além das mãos, além do coração, é coisa da alma...
Viagem de um homem comum a um céu
extraordinário
Por André J. Gomes
E como um dia há de ser com toda boa alma, hoje
um homem subiu aos céus de manhãzinha e descobriu que o paraíso não é só um
amontoado de anjos tomando sol num campo verde e infinito além das nuvens.
Entorpecido pela surpresa, o homem se deu conta de que o céu é uma grande e
abençoada cozinha.
Ali, as crianças brincam com batatas espetadas
por palitos de fósforo formando rebanhos em fazendas de sonho, debaixo de uma
mesa onde as avós escolhem de grão em grão o arroz e o feijão das próximas
refeições. Os adultos, homens e mulheres, sem distinção, trabalham nos afazeres
culinários com a seriedade e o prazer de quem leva adiante sua única causa.
O recém-chegado se põe a um canto e observa o
funcionamento perfeito das coisas. Repara na organização sublime das panelas e
utensílios, na limpeza do chão, nas paredes de cada cor, na integridade do
trabalho de um e outro, na beleza da vida que acontece ao sabor dos detalhes.
Ele deita os olhos na espuma branca do leite que ferve e derrama a manhã sobre
o mundo, respira fundo o cheiro afetuoso do pão feito em casa, do café que
borbulha para acordar o dia, dos temperos sutis, dos bolos que crescem lentos no
forno como os amores novos em seu saber esperar.
E assim ele vai se deixando estar ali, entregue
à observação das miúdas formalidades culinárias, ao rigor elegante das pitadas,
ao movimento organizado dos anjos preparando a ceia do mundo, quando nota a seu
lado a presença definitiva de uma fada, porque no céu também há fadas,
organizando e inspirando a orquestra sublime em seus afazeres.
Com a beleza do riso das crianças que brincam
na praia, a fada o olha nos olhos e o convida a passear pelo céu a seu lado.
Uma porta se abre, ela o leva até o quintal e lhe mostra a floração das
alfaces, os brotos da couve-flor, o som genuíno dos rabanetes e cenouras e
mandiocas arrancados da terra sob o destino sublime de enfeitar e fortalecer as
saladas de frescores e frescuras divinas.
E o espetáculo de viver e interagir se faz
escandaloso aos cinco sentidos do homem na grandeza da horta, na perfeição da
cozinha, na beleza da fada que tem o riso triste, os olhos de afeição, as mãos
e o coração de quem cozinha para manter o mundo em equilíbrio.
O homem e a fada caminham juntos, em seus dois
estados diferentes de existir. Ela conta a ele em sua dicção perfeita de fada
os segredos das grandes receitas, revela o ponto exato dos cozimentos, os
ingredientes insuspeitados, enquanto as panelas bafejam encanto e mistério. À
hora do almoço, ela o convida a sentar-se à mesa, e ali há mais pessoas do que
seus olhos podem ver. Durante a refeição, as conversas são longas e saborosas,
das entradas à sobremesa e ao café.
Eles comem sorrindo, depois dormem a sesta sob
um vento manso. A fada acorda o homem à tardinha e o leva para caminhar sobre
as nuvens. Anoitece, os assuntos se multiplicam como as safras mais fartas e
eles continuam ali, beliscando as estrelas, contemplando a noite, a lua e o
susto do amor.
Ela diz “bem-vindo”. E caminha sob o olhar
humano do homem até a beirada de um penhasco no céu. Lá de cima, polvilha a
Terra de amor e açúcar, resgatando em hora certa os seres pequeninos aqui
embaixo de seus desastres domésticos, tornando seu caminho mais sutil e
suportável.
Em sua infinita graça e devoção de quem cozinha
por puro afeto a seus comensais, ela sorri um riso meio triste e abre inteiro,
generosamente, o apetite do mundo para o maravilhoso manjar da vida.
Hoje um homem subiu aos céus. E descobriu que o
paraíso é uma grande e abençoada cozinha, e que lá existe uma fada que sorri o
sol e faz a vida mais doce.
° ° ° ° ° °
Nossa que lindo! Adorei.
ResponderExcluirEncantador...
^_^
Adorei o texto! Que todos tivessem essa visão romântica da vida! A arte de cozinhar é um dom divino e pressupõe muito amor.
ResponderExcluirSou péssima na cozinha , então me encanto com quem tem o dom da culinária, e quase num passe de mágica entra na cozinha e das suas mãos saem coisas lindas e saborosas. O texto é de uma grande sensibilidade! bj
ResponderExcluirLindo texto! Bela escrita! Amei!!!
ResponderExcluirBjs