Inverno
Adriana Falcão
A paixão apagou.
Sumiu.
Devagarinho, talvez, ou então de vez, como uma
bolha de sabão, o fato é que se foi.
Paixão, cadê você?
Não existe mais?
Não faz mal, não.
Dizem que depois da paixão fica o amor. (Às vezes.)
É quando a doidice sossega, a agonia desaperta, o
pensamento serena, a vida acena com outras possibilidades, a sanidade retorna,
a realidade se reapresenta: lua é lua, noite é noite, palavras são só palavras,
e nem todas elas são boas.
Agora sim.
Também era impossível viver ardendo naquele fogo,
eternamente.
Ainda bem que passou, não cega mais, aquilo já era
um inferno.
Melhor assim, sem tanto calor.
Já dá pra respirar melhor.
Dá até pra raciocinar, eu sou eu, você é você, e
nós dois juntos somos dois.
É só somar.
Se eu quero isso e você quer aquilo, tudo bem. (É
impressão minha ou o querer da gente coincidia sempre antes? Esquece.) Nada
melhor do que se sentir de novo uma pessoa.
Eu vou pra cá, você vai pra lá, mais tarde a gente
se vê.
Agora eu preciso olhar as garotas saindo das
escolas com seus moletons, de preferência com as mangas sobrando para fora das
mãos, tomar um café, depois um licor, usar meu chapéu, sabe quando a pessoa
está incrivelmente necessitada de dançar na chuva?
Você faz o que quiser: cinema, teatro, boteco,
futebol, o controle remoto é todo seu.
Antes de dormir a gente se encontra embaixo do
cobertor, eu e você, dois, mais esse friozinho, três. Vai ser ótimo. Muito
agradável. Confortável. Calmo. Tranqüilo.
Reconheça: não é muito mais fácil viver assim,
desafogado, do que naquela tormenta?
Não ouviu o que eu falei?
Deixa pra lá.
Está bom aí, em você?
Aqui em mim está um fracasso, eu confesso.
Que tal meia garrafa de vinho, uma lareira, uma
música antiga, qualquer coisa?
Não tem mais jeito?
A paixão não volta?
Quem disse?
A lógica? A química, a física e a biologia? Toda e
qualquer estatística? O funcionamento hormonal? O passar do tempo?
Pois, então, se danem todos eles.
Você está com 21 e eu com 19, frente a frente,
enlouquecidos. Então você tem 33. (De presente de aniversário eu até escrevi
uns versos, mas você continuava preferindo beijos.) De repente eu me dou conta,
já fiz 40 e continuo louca. Quando você tiver 58, estaremos mais encantados
ainda. Viraremos matéria de pesquisa, objeto de museu, motivo de inveja, o mundo
inteiro comentando "tá vendo aqueles dois? Que loucura. Que grude. Que
estranho. Eu acho que é mentira. Será? Sei lá. Que coisa!".
Deixa falar.
Não liga, não.
Então, vai: me tira pra dançar.
Agora, sim, qual o problema?
Depois eu termino a crônica.
Texto: Adriana Falcão; Fonte: Revista Veja Rio
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